quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Conto de Natal


Eu remexia os meus “guardados” procurando uma mensagem de natal que pudesse copiar e mandar para os vizinhos e conhecidos, porque para os amigos a gente diz num abraço.
Remexendo nas caixas, olhando na estante (que mania eu tenho de guardar e guardar!) já nem me lembrava o que procurava e eis que encontro um livro de Rubem Braga e nele, um “Conto de Natal”.
Pensei: deve ter aí uma frase, um trecho que eu possa “copiar”.

Comecei, então, a ler.

Ele conta a história de um casal - um homem desempregado, a mulher grávida, prestes a ter o bebê, e o filho de 6 anos. Juntos eles atravessam um pasto, passando por cercas de arame farpado, em busca de um lugar para nascer a criança.
Durante as agruras do não encontrar, do não ter, do sol a queimar a pele e os sentimentos, e depois, da chuva que cai e torna tudo ainda mais difícil, eles encontram um carreiro e seu carro de boi que os leva até uma casinha de sapé, uma estrebaria, para passarem a noite.
Quando o carreiro volta no dia seguinte, sem ajuda e com pouca comida, amargurado (talvez por não ter trazido quase nada), amaldiçoa “aquele” natal.
Nesse momento, o pai que há muito não ria, lembra-se que é dia de natal e, então, rindo, decide dar ao recém-nascido o nome de Jesus Cristo.

Poderia, se o autor assim o quisesse, acabar aí a história. Ou, talvez, numa cena comovente, inspirado pela Providência Divina, o dono da fazenda, arrependido, encontra o casal, devolve ao homem o seu emprego salvador (ou sofredor) e os leva, ele e sua família, para uma farta refeição e...

Mas não, o autor, com todo o seu poder e glória, dono absoluto do seu conto e do sentimento que o induzia a escrever, continuou:
O filho de 6 anos olha o irmãozinho recém-nascido e chama o pai para ver.
- “O menino Jesus Cristo estava morto!”

O meu coração de leitora, ali, em pé perto da estante, estremeceu. Meus olhos ficaram embaçados e minha garganta não deixou escapar sequer um “oh”!

Deu-me uma bruta raiva do Rubem Braga – como é que ele teve coragem de matar o menino Jesus, aquele que poderia salvar o mundo?! Pelo menos “aquele” mundo?!

Fechei o livro num gesto desalentado, afinal, o menino estava morto!
E por todo o resto do dia uma tristeza me acompanhou enquanto eu tentava entender por quê o autor deu à sua história – de natal - um desfecho tão mórbido.

Já no final do dia, lembrei-me da necessidade de escrever nos cartões de natal, mas, havia dentro de mim ainda a imagem desolada de uma casinha de sapé, uma mulher e seu filho morto, uma criança de 6 anos com fome, um homem em trajes rotos a fumar um cigarro de palha do lado de fora, sentado num tronco, tendo ao seu lado um carreiro.
O que fazer?

...
E penso, agora, que talvez Rubem Braga não tenha “matado Jesus” por maldade!
É que talvez ele não tenha visto a esperança nascer junto com aquele menino, naquele pasto sem árvores, e preferiu mandá-lo de volta, para o mundo do qual nada se sabe, antes que tivesse de sentir a dor da falta de comida, do sol que queima, do arame farpado, da injustiça.

Talvez tenha sido melhor assim... Seria uma vida tão dura para Jesus Cristo. Sem natal, sem estrela...

domingo, 21 de novembro de 2010

Pipas

“Ô, avião, traz um nenê pra mamãe”!

- Cala a boca, menino, não fale besteira.

Eu não sabia, aviões naquela época, naquele lugar, eram raros.
Filhos, não. Éramos muitos.

Éramos muitos...
Meus irmãos mais velhos foram crescendo,
Cresceram tanto que se distanciaram dos mais novos.

Meu pai era como um menino franzino,
Que controlava os filhos como quem empina várias pipas ao mesmo tempo.
Uma hora uma se movimentava mais, se desequilibrava,
Depois se endireitava, e o vento já a perturbar outra.

Os mais velhos voavam mais alto, todo dia se distanciavam,
Cada dia um pouco mais, um tanto mais longe,
até que a linha arrebentou.

E como num passe de mágica, as pipas mais altas,
Livres de suas linhas, criaram asas, independência.

O menino que corria atrás de suas pipas foi ficando cansado,
Já não podia mais correr - nem precisava – pra quê?
Suas pipas agora tinham asas, podiam se equilibrar sozinhas.
Podiam até se esquecer de que eram feitas de papel,
De que antes tinham linhas e que havia uma mão a segurá-las.
Foto: Cândido Portinari - Pipas

domingo, 31 de outubro de 2010

Um só pedido


O homem jogou flores no mar,
Pedindo ao Pai: não me deixe afogar.
Subiu de joelhos as escadas da igreja
Implorando a Ele: livre-me da peleja.

Marejou seus olhos num ato de contrição
Suplicando, gritou: Senhor, dê-me Seu perdão.
Acendeu muita vela, tanta cor diferente,
Repetindo em cada uma: por amor, Sê clemente.

Cerrou os olhos como um aflito,
Levou as mãos ao peito num gesto contrito
E baixinho, quase um lamento, pôs-se a dizer:
O Senhor tudo sabe, tudo pode ver
Não há meios nem como de Ti esconder
O que minha boca não fala, o coração diz
Eu quero, ó Pai, é que me faça feliz!

Deus sorriu – paciente.

domingo, 24 de outubro de 2010

Medo

O medo caminha lá fora.

Seu uniforme cinza, sua cor pálida, suas mãos frias.
O medo tem medo que mudem o caminho,
Que troquem as placas, que a luz se apague.

O medo percorre ruas sombrias, de cabeça baixa
E passos sufocados.

Nos corredores do colégio, corredores tão longos,
O medo, tão pequeno, caminha com medo.
Tem medo da freira que governa a escola,
Sua mão de ferro, seu semblante de ferro.

Os portões se abrem – o caminho é o mesmo de todo dia,
Mas o medo, coitado, tem pavor das sombras.
Ah, o medo é tão frágil! E se o ônibus se atrasa?
E se faltar tempo? E se sobrar?
Há tantos buracos na sua estrada...

A palavra ensaiada. Fique calado – podem te ouvir!

O medo calado. Um coração apertado batendo
Dentro da armadura. Batendo baixinho.
Com muito medo.

domingo, 3 de outubro de 2010

Maria

Maria era dura como a pedra onde batia a roupa de suas crianças.

Quanto mais a vida a maltratava, mais um pouco Maria endurecia.

Não que seu coração tivesse essa dureza.
Maria às vezes se fazia gentil, uma gentileza desacostumada,
Áspera, pois com a vida de outro jeito não aprendera.

Não sei se Maria sofria – ela era dura como o ferro,
Seu nome não rimava jamais com alegria.
Quando a vida dela zombava, Maria esperneava, gritava e
Depois... Depois Maria seguia.

As crianças que por ali nasciam, primeiro viam Maria.
Maria parteira, Maria que nunca partia.

Acho que Maria vivia porque a vida ali a queria.

Tanto que Maria às vezes perguntava:
"será que Deus de mim não se alembra?"
Eu acho que foi birra da vida que
Tanto queria dobrar Maria.

Mas, um dia, a morte chegou e, com grande respeito,
Desculpando-se, chamou Maria.
Maria, cansada, centenária, despiu-se de sua brabeza
e, obediente, a seguiu.

Obediente - como a vida nunca viu.
(À Dona Maria d'Otávio, que partiu aos 105 anos de idade.)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Volver

Ele estava mesmo de caso pensado diria a sua mãe.
Há dias vinha matutando, acordando muito cedo e depois, sem saber ao certo o que fazer, ficava negaceando as horas. Cada dia mais se pegava a falar pra si mesmo. Pensava muito, fazia pouco. A vida agora tinha cheiro de perfume derrancado.
Pensou, achou engraçado ter se lembrado dessa palavra: derrancado – repetiu-a em voz alta.
E como um ator ensaiando sua fala, falou para si mesmo: “Com quantos paus se faz uma canoa?” – complementou: Com quantos sentimentos se faz uma vida?
De uns tempos pra cá, parecia um gato olhando nas gretas. Às vezes olhava a rua e ela lhe parecia tão enfadonha. Se saísse, teria que cumprimentar as pessoas, sorrir, ser simpático... Melhor ficar dentro de casa, ponderou, não andava inclinado às simpatias.
Pensou em viajar, voltar ao início, fazer o caminho inverso (já ouvira ou lera isso). Talvez fosse bom.
Lembrou-se de um tempo de criança, da mãe gritando embaixo das grandes árvores (houve um tempo em que havia grandes árvores nos quintais): “Desce daí, desce já. Você vai ver, quando descer vou te dar uma tunda”! Dava nada! Quando ele descia e ela o via em segurança, punha-se a fazer aqueles discursos que mal ouvia: quase doce ela dizia: “Ô, meu filho, onde já se viu subir tão alto daquele jeito, na grimpa da árvore!” – depois, mais asperamente completava: “depois, cai de lá, quebra um braço, uma perna, aí eu quero ver”! Pensou, quase falando sozinho outra vez - criança não tem medo.
Às vezes, passava por alguns apertos e entrava meio ressabiado em casa. Lá vinha a mãe:
“O que você andou aprontando? Boa coisa não é! Por que essa cara branca que nem pano de polvilho?!”
Ele riu pensando em quantas expressões os pais usavam que traduziam tão perfeitamente o que se passava.
Quase sempre ia dormir sob protestos, afinal, tinha tanta coisa para fazer e o dia passava tão rápido. Além de tudo, perdia meio dia na escola!
O pai fazia a sua parte no discurso:
“No meu tempo, na sua idade, eu já ajudava o meu pai. Agora, é mesmo de amargar... esse povo de hoje não quer saber de coisa séria...”
À noite, o pai contava os casos de sua infância, do Pedro Malasartes e das figuras engraçadas de seu tempo. Eram tantos casos bons de ouvir. Às vezes ouvia o mesmo por muitas e muitas vezes e não se cansava. De vez em quando pedia: “Ô, pai, conta aquele do...” e ele ria, um riso bom e punha-se a contar. Tinha um que o pai gostava de contar e ele de ouvir: aquele do vizinho que morria de vontade de ter um carro. Mas, carro era artigo de luxo, para pouquíssimos privilegiados. Mesmo assim, ele juntou dinheiro por alguns anos e comprou um carro usado, grande, mesmo não sabendo dirigir. Ele imaginava que ‘aquilo’ não era coisa difícil, afinal, o fulano sabia! Então, ele pediu instruções para o fulano, assim, sem ligar o motor (naquelas bandas, carteira de motorista era uma ‘bobagem’). O outro explicou para que serviam todos aqueles pedais: “aqui é o freio, ali a embreagem, esse o acelerador; toda vez que mudar a marcha é preciso apertar esse...” Coisa simples, muito simples! O carro lá na garagem, sempre limpo, bem cuidado. De vez em quando o dono o punha para funcionar senão teria problemas com a bateria, o outro avisara. Mas, um dia, num domingo de manhã, muniu-se de coragem e saiu com o carro. Ligou-o e saiu, bem devagar pra não levantar a poeira da rua. Engatou a primeira marcha - isso ele sabia - sempre observava os motoristas enquanto ia no banco do passageiro sonhando com o dia em que faria isso. O coração mais acelerado que o do Corcel...

Mais tarde ele se sentou no banco, na casa de seu pai e contou o que houve depois daquela curva suave: “Acho, compadre, que não é assim tão fácil. Pus o bicho pra funcionar, fui levando devagar e, de repente, me enganei com os tais pedais... malhei a fuça do danado na árvore!”.
Com tantos trejeitos, adjetivos, o pai a fazia ‘uma senhora história’. E ele perguntava ao pai, e depois e depois, mesmo já sabendo o final: “o homem mandou consertar o carro e o guardou na garagem de novo. De vez em quando, ele o ligava pra não arrear a bateria. Limpava que ficava uma beleza. Ele tinha o seu sonho ali, guardado, visível...”

Voltou a rir da história. Agora, sozinho.

Olhou as horas, pensou no tempo, sentiu uma tristeza tão dolorida! Lembrou-se de tantos sonhos e sentiu vontade de ter um ali, guardado, visível!

Arrumou a mala e saiu apressado – ainda poderia encontrá-lo.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Infância Azul

A casa é azul.
Azuis são as flores dos manacás que perfumam as tardes.
Azul é o céu que cobre a cidade no mês de junho.
Azul é a montanha que cerca a pequena cidade.
Nada além parece existir.

Há conforto no tom que se espalha e parece voar nas asas da borboleta,
e se resguarda no quintal da casa.

Perfilam-se no quintal inúmeros pés de laranja,
e suas pequenas flores, tão brancas e perfumadas, parecem milhões de minúsculas fadas a espalhar água de cheiro sobre a cidade.

O azul se derrama e me confunde.

Mas, ali, a vida não é azul.

Meu pai, em pé na porta, olha em volta.
Tudo o que ele tem está ali:
uma casa azul e seus manacás e seus pés de laranja.
Esse tudo lhe parece tão pouco...

Eu, criança, olho o meu pai.

Tudo o que sei é que há conforto na casa azul, há o cheiro bom dos manacás e das laranjeiras. E ainda há borboletas!

Olho o meu pai na porta, admirada – ele é o dono do mundo azul.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

É Noite!


Da janela do meu quarto eu vejo a noite chegando.
Ela vai se derramando, se espalhando,
Entrando pela janela, me agasalhando.
A noite vai acontecendo em mim.
É hora de decantar os sentimentos.

“É noite. Tudo se sabe.”

O Rio


O rio corta a cidade, ambos inquietos e escuros.
Suas águas, umas vezes impetuosas, tantas outras, oprimidas,
Vão descendo avenidas, vencendo obstáculos,
Exigindo pontes, seguindo em frente.

O rio, normalmente contido e resignado,
às vezes se faz bruto e transgressor.
Reclama espaço, se vinga e mata, para, depois,
Voltar conformado para seu leito - taciturno.

A moça passa e atira-lhe uma flor;
Brincando, o rio vai girando-a nos espirais;
Alguém passa e joga lá dentro o que não lhe serve mais.
Corre o rio com presteza e leva a sujeira dali.
Há outro que, debruçado na ponte, observa-o cheio de angústia.
Lágrimas caem - o rio colhe-as para sempre.

Ele, o rio, passa; não escolhe – recolhe e acolhe:
A flor, o lixo e as lágrimas. Nada recusa.
Leva o que lhe dão – um pouco de cada um.

domingo, 15 de agosto de 2010

Embriaguez


Era ainda uma menina quando aprendeu a voar.
Seu sorriso generoso deixava ver os dentes separados e
aquelas sardas, que ela dizia detestar, lhe assentavam um ar travesso
- Como convinha a uma menina que voava.

Havia aqueles que do chão não tiravam os pés, nunca,
e outros, cuidadosos, que estavam sempre a lhe prevenir:
Menina, menina, voando tão alto, pode um dia se machucar.

A vida é longa, ela dizia. Estou recolhendo histórias
para contar mais tarde, bem mais tarde,
quando finalmente não puder mais voar.

Mas, o tempo, inquieto, corria na terra, voava nos céus.
E lá no alto, a menina só pensava em ser feliz,
Vendo e fazendo coisas e cultivando histórias
Como se a vida fosse um vôo sem fim.

E ela voava cada dia mais alto e não pensava em voltar.
Seus olhos foram ficando embaçados, cheios de nuvens.
Quase sempre embriagada dos ventos que sopravam lá no alto.

Em seu vôo cambaleante pela vida, guarda ainda o jeito de menina,
persistentes sardas no rosto e os dentes separados
- mas cadê sorriso pra mostrar?
A menina nem se lembra das histórias que guardou para contar.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Marias

Mês de maio.
Maria menina brinca nas ruas da cidade.
Lá vem ela, tão linda, cantando cantigas de roda.
Com seu vestido azul, enfeitada de flores.
Seu sonho de criança é ser bailarina.

Mês de maio.
Maria moça passeia pelas ruas da cidade.
Lá vem ela, tão jovem, sua vida é feita de sonhos.
De vestido azul, um caminho de flores.
Seu sonho de jovem é ter um grande amor.

Mês de maio.
Maria mulher caminha pelas ruas da cidade.
Lá vai ela, tão bonita, seu caminhar é mais sereno.
Vestida de azul, coberta de flores.
Seu sonho ainda é encontrar o amor.

Maria, marias de todos os meses.
Elas vêm, elas vão, meninas, moças, mulheres,
Nas ruas das cidades, Maria, marias vivendo,
Querendo flores, sonhando amores.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Fada Minha


Eu não conheci minha avó materna.

Quando eu nasci ela já havia partido – houve um desencontro.

Mas desde menina senti muito carinho por ela,
como se tivesse sempre andado ao meu lado,
penteado os meus cabelos e enxugado as minhas lágrimas.

Ela era a minha fada.

Minha mãe falava dela com tanto amor,
contava sobre sua vida sofrida e eu, menina,
sentia os meus olhos declararem a ela todo o afeto
que não tive tempo de demonstrar.

Não havia em lugar algum qualquer fotografia dela –
naquela época fotografias eram coisa difícil.
Então, eu dei um rosto a minha avó,
criado com os meus sentimentos – os melhores:
um rosto delicado, tão suave! E eu a amei.

Para ela eu plantei flores, escolhi músicas.
É nela que eu penso quando ouço Sonata ao Luar (Moonlight Sonata),
É ela que imagino sentada na cadeira de balanço,
extasiada com o meu jardim.

domingo, 25 de julho de 2010

Mil Tons

Mil tons de luz entram pela janela
Há uma janela aberta na minha alma, na minha vida
E por ela entram feixes de luz: mil tons
São arco-íris de mil cores
Tantos matizes – mil tons.
Assim como a voz, suave como o céu,
Forte como a terra – tão Minas!

Canções que se fazem em mil tons
Arco-íris de luzes – arco-íris de sons
Mil tons de cores – mil tons de voz,
É Milton cantando, colorindo sentimentos,
Abrindo janelas: de Minas e almas,
Transpondo as montanhas.
É Minas cantando com a sua voz.

sábado, 24 de julho de 2010

Insônia

Meus olhos parecem sofrer.
Há tantos barulhos lá fora,
Há muito mais aqui dentro.

O vento tortura a janela.

O pensamento inconcluso,
Os medos que tenho guardado,
A vida que imaginei,
O dinheiro que me falta,
As frases que não disse
E outras que queria não ditas.
Tudo.

Tudo triturado convulsivamente,
Rodando estupidamente,
Na minha cabeça-liquidificador.

O guarda assobia,
um cachorro late,
Uma tela de Picasso,
O relógio, insensível, acredita que me desperta.

domingo, 18 de julho de 2010

Avesso

Avesso. A palavra fica se repetindo nos ouvidos da menina como a querer que ela a decifre, que a vire pelo “avesso” e a perceba em toda a sua essência, que encontre o seu cerne.

Mas, ela só tem 10 anos e tudo o que lhe ocorre, nesse instante, é perguntar:
- Por quê tenho que me preocupar tanto com o avesso? Ninguém vai ver quando a tolha estiver em cima da mesa!

A mãe, carregando as roupas que recolheu do varal, sem se virar, sem a olhar, fala de longe:

- Porque é pelo avesso que se conhece o bordado. É pelo avesso que se sabe se a bordadeira é boa ou não, se é caprichosa...
A última palavra é pronunciada de maneira quase doce, numa tentativa de fazê-la entender a importância do que acabara de dizer.

Parece que sua mãe gosta de “avessos”. Teve a impressão naquele instante de que já a vira examinando o avesso das toalhas nas mesas das casas visitadas, das roupas que lhe eram mostradas - disfarçadamente.
...
Na casa havia duas meninas e um menino. Ela, Maria Laura; sua irmã mais velha, Maria Emília e seu irmão mais novo, Artur.

Moravam em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, muito pequena mesmo. Algumas poucas ruas de terra, ou melhor, de uma fina areia de rio, que as tardes de agosto e setembro transformavam em uma bela e poética cidadezinha, com o sol correndo por suas ruas e iluminando as casas caiadas. Parecia que as flores dali tinham cores mais intensas. As zínias, cujo nome ela descobriria muitos anos depois, de muitas cores, eram somente “as flores”, que enfeitavam o quintal e os vasos. Havia também perpétuas e pés de sabugueiro que exalavam um doce aroma e serviam de remédio para as crianças com sarampo.

Era assim, é preciso que se diga, quando aparecia uma criança com sarampo, logo várias outras surgiam como se tivessem feito um acordo.
Então, os pés de sabugueiro recebiam as visitas das mães zelosas com medo que suas crianças tivessem “sarampo recolhido”.

Sarampo recolhido. A menina se põe a pensar o que poderia ser isso? Como é possível recolher o sarampo?

- Ora, deixe de bobagens, menina, dizia-lhe a mãe. Sarampo recolhido é quando não sai pra fora do corpo. E aí é mais perigoso.

Ela pensa, por que é assim? Por quê quer sempre saber o significado de tudo, de onde surgem as expressões, por que dizer daquela forma e não de outra. Como “sarampo recolhido”!
...
A vida ali era doce. Tinha cheiro de pão, de madeira perfumada, de flor de laranjeira e de sabugueiro. Mas, às vezes, também podia ser amarga. Mas isso, ela também só saberia muitos anos depois, quando olhasse para trás.
...
Por enquanto, é somente uma menina que pensa no bordado que a mãe lhe pôs nas mãos, e no desenho que a agulha teima em não seguir. Olha de novo a mãe lá fora, à sombra de um pé de laranja, e imediatamente se lembra do livro que o pai lhe trouxe quando viajou para a capital - Reinações de Narizinho. Tantas vezes exibido na escola, tinha sido enviado por uma tia.
A Professora o lia em voz alta, todos os dias, dez minutos antes de terminar a aula, se todos se comportassem bem – era um “prêmio”. Era assim, uma maneira de dividir com os colegas, a mãe lhe havia dito isso, e também o pai e a professora. Ela, no entanto, queria tê-lo só para si. Mas, agora que sabiam do seu tesouro, todos o queriam.
Lá, aonde se escondem todos os sentimentos, sentia o quanto era boa aquela história de possuir “O” livro. Queria tanto ser a dona daquele mundo que ele descrevia.
Ah! Não tem jeito. A mãe está lá fora como a lhe lembrar da realidade.

Nada disso é verdade, dissera-lhe a mãe. Ora, ela sabia disso e isso não tinha “nenhuma importância”. Ela também sabia “fazer de conta”.

A menina se debruça sobre a grade de madeira que cerca toda a grande varanda, deixando de lado o bordado. Alguns degraus separam a casa do quintal e, de repente, vem-lhe um sentimento diferente, que, ainda, não sabe explicar, como uma saudade, uma tristeza, uma... perda.

- Mãe, nós iremos à missa no domingo? - pergunta do alto da escada como se tentasse voltar à cena.

A mãe a olha como a querer decifrar o sentido da pergunta, e aquele tom quase triste.

- Acho que o padre não vem neste domingo. Se vier, iremos todos. E, por falar nisso, onde estão a sua irmã e o seu irmão?

Havia por ali uma pequena igreja que, de vez em quando, recebia a visita do padre. Era dia de encontrar parentes e amigos, de vestidos e sapatos novos (aqueles que só se mostram aos padres e àqueles que, com fervor e alegria, ali estavam).
Mas, se tivesse missa, ela o saberia antes. A igreja seria lavada, os bancos seriam limpos para receberem as roupas de ver Deus, e os vasos, antes vazios, receberiam as mais belas rosas, aquelas que se guardam para a Nossa Senhora.
Ela saberia antes, no final da aula de sexta-feira a professora diria para irem à missa. Era como um dever de casa.

Laura se afasta lentamente. Entra na casa e o sol tece seus derradeiros fios de luz. Toalhas brancas de crochê enfeitam as mesas, o fogão a lenha logo será aceso para aquecer as panelas e a água para que todos possam tomar banho quente. Fecha os olhos e respira fundo, bem fundo, como a querer guardar a imagem e aquele cheiro para sempre.

A menina chega à janela e olha a rua. A irmã está lá conversando enquanto puxa docemente as pontas do cabelo, como a medir-lhe o comprimento. Como sua irmã está bonita com aquele cabelo longo, ela pensa, um dia terá o seu assim.
O irmão, ainda menino, constrói estradas de curvas acentuadas que, um dia, o levarão pra longe daquele mundo.

O pai chegará daqui a pouco, cansado, e dirá que as coisas estão indo bem agora. A água estará quente, haverá cheiro de comida e o mundo parece ser só isso – tão perto, tão...

A menina olha de novo, a casa, o mundo lá fora que se estende somente até aonde alcança a sua vista, até a árvore mais próxima, até o outro lado da rua de areia fina. Tudo tão simples e quase descobre o quê é isso - o avesso da sua vida.

Mas, não agora.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Eu e Brasília


Brasília e eu temos a mesma idade.
Nós duas nascemos no centro-oeste deste imenso País.
Para uma cidade, ela é ainda muito jovem;
Para mim, nem tanto.

O tempo e a vida foram nos transformando:
Nela surgiram novas avenidas, ruas, vielas,
Caminhos que não estavam nos projetos.
Em mim também.

Brasília foi ficando mais árida - incontrolável.
Do seu planalto observa o ‘resto’ do país e dele desdenha.
É mulher devassa que seduz e, depois, Medusa - transforma em pedra.
Cada dia menos afável, cada dia mais intumescida.

Eu não. Eu posso ser o que quiser.

Tristeza

Tantas vezes você vem e tira de mim a alegria.
Rouba-a dos meus olhos, da minha voz,
E mesmo sem perceber me pego a cantar
todas as cantigas que a tristeza me faz lembrar.

E eu fico assim, de lado da vida,
Buscando nos livros poemas sofridos
Fazendo de conta que não choro por mim.

sábado, 19 de junho de 2010

Legado

Pois se de tudo fica um pouco,
Ficou um pouco de nosso pai em nós.
Aquele olhar cansado, amedrontado muitas vezes,
Também se vê em nosso olhar.
Há ainda um pouco de desesperança,
Uma sobra de angústia.

Da nossa mãe, o que dizer?
Há tanto, que algumas vezes nos incomoda.
Há inquietude, um receio de não conseguir.
Um jeito de dizer sem querer ter dito,
Contornando palavras e, por que não,
Quase sempre pensando em desdizer.

Do nosso pai e da nossa mãe,
Sobraram tantas coisas em nós,
Muito mais que o detalhe do queixo
Muito além do jeito de olhar.
Há, sobretudo, uma vontade de prosseguir.
Uma fé persistente, orgulhosa,
Que nos impede de retornar.

Quando eu ouço deles as histórias,
Quase sempre tão simples e sofridas,
Meus olhos, tão parecidos com os seus e os deles,
Ficam amargurados, assim, rasos d’água.
Mas, sempre há um ‘de repente’, coisas da vida!
Eles contam, e juntos, outra vez os olhos se inundam
Mas, dessa vez, a gargalhar.

E descubro também nessa hora,
Que esse nosso jeito de rir, contido,
quase envergonhado, também é deles.
Pois veja, se não foram eles que nos ensinaram
a moderar o riso, o amor, a dor - a vida.
A viver sem muito se exaltar.

Nessas e em outras tantas horas assim tão nossas
É que olho em sua direção e me reconheço.
Tanto você quanto eu,
nas pegadas do nosso pai e da nossa mãe,
carregamos com enleio e orgulho
,
Uma constatação: há muito deles em nós.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Carlos e Mário – Drummond e Quintana

O dia estava bonito! Eu creio – é mesmo preciso crer – que aquele dia estava especialmente bonito para ser cantado, ou melhor, poetado.

É estranho, diriam alguns, que em pleno mês de agosto tenha havido um dia tão suave, tão propício a ser tema de um poema. Mas, assim foi.

Na paisagem daquele dia criado pela poesia, eis que surge um homem magro, elegantemente simples, fala mansa, olhar doce (parecia ter chegado de Minas Gerais) e pôs-se a escrever.
Enquanto escrevia, lançava pequenas borboletas brancas que contrastavam com o azul do céu, ao mesmo tempo em que espalhava palavras que se orquestravam e se transformavam em poemas e músicas e eram como flores de todas as cores tornando policromáticos aqueles campos. E tudo ‘parecia’ perfeito! Parecia.

Mas, faltava algo – ou alguém.

O tempo passou, sem que ninguém se apercebesse. Mesmo porque, por ali não havia calendários nem eram mesmo necessários.
“Porque, na poesia, o tempo não existe! Ou acontece tudo ao mesmo tempo...”

E foi assim, passando sem se dar conta que, num belo dia de maio, chegou por ali um outro homem, tão elegantemente simples quanto aquele que viera antes. Eles se olharam e se entenderam. Ambos tinham o mesmo jeito de olhar. E se cumprimentaram como se fossem velhos amigos esperando um pelo outro:

- Olá, Carlos!
E Carlos chegando-se um pouquinho para o lado, para deixar o outro sentar, respondeu:

- Oi, Mário. Eu estava te esperando...
E depois disse:

“Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo.
Ele está cá dentro e não quer sair.
Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira.”


Depois, apreciaram a tarde que caía, bonita como só um grande poeta poderia descrever.

E Deus suspirou feliz. Afinal, seus filhos estavam de volta.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Re-sentimento

Você me diz que o que estou sentindo é ‘ressentimento’.
E eu penso: ressentimento – ressentir – sentir novamente.

Sentir outra vez a dor, o amor, a aflição, a afeição,
o medo, a coragem, a angústia, a alegria, qualquer que seja,
outra vez, o mesmo sentimento.
Não entendo ressentimento como algo sempre ruim –
mas, uma reprise do bem ou do mal, de qualquer natureza,
que acariciou ou arranhou o coração.

Mas a mágoa não. É outro ‘sentir’ - outro sentimento.
É um lembrar com tristeza, como um rio correndo devagar,
sem alarde, sombrio e melancólico.
É um querer voltar no tempo e impedir que se faça o que está feito,
É um desejar que não se tivesse quebrado o encanto.

É a luz tênue de uma vela gotejante,
exposta a um vento suave e frio que entra pela fresta.
É um doer que se quer esquecer.
É esperar a próxima estação, o fim do inverno.
É um desejar que passe, que não doa.

A mágoa é uma lagoa de águas tristes à espera do sol.
É amor traído que não se vinga porque ainda se quer amar.
É o carinho e a afeição que não se expressam,
É sentimento bom que encruou.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Asas

Não existe sonho mais bonito,
Sonho de verdade, de sonhar dormindo,
Do que o de estar voando.

Por que será que DEUS não quis dar aos homens
Como prêmio talvez, por qualquer motivo
Um par de asas bem bonito?

Diversão


Caiu uma chuva boa e mansa.
Logo depois o sol voltou a brilhar
Na folha de lótus ficou uma pequena poça
Esquecida, brilhava como diamante.
O vento balançava a enorme folha
De lá pra cá, de cá pra lá.
A pocinha parecia criança
Divertindo-se no balanço do parque.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Desencontro

Eu te vi na rua.
Em sentido contrário ao meu – do outro lado.
Era você, simplesmente vindo.
Quisera tanto que me visse!
Ai quem me dera que não me visse!

Não assim, quebrantado.
Esse calor queimando o peito,
enrubescendo o rosto,
Essa voz, eu sei, desgovernada.
Ah, como eu queria que não me avistasse!

Você passou e eu desejei tanto que me olhasse
E eu te daria um sorriso fácil, de todo dia,
Aquele ‘tudo bem’ que se diz a qualquer um.
A voz sem tropeços, corriqueira...
E do meu coração desgovernado
Nem de longe se apercebesse.

Ah, como eu queria, de qualquer forma,
Apenas que me notasse.

sábado, 15 de maio de 2010

MARÇO


A tarde é densa, cheia de calor.
O céu estampa cores fortes
Como numa loja de tecidos indianos.
Tenho vontade de correr de braços abertos
Mas os pés se inibem.
Os braços não se erguem.

Coração, assim, crispado de ansiedade.
Imagino música, receio olhares.
De quais sentimentos se faz o momento?
Não os defino, não os escolho.
Todos eles parecem arder em meu peito.

É somente mais uma tarde,
Eu receio ter dito,
É somente mais uma tarde,
Eu receio ter fingido.

domingo, 9 de maio de 2010

RETORNO


Era ainda manhã quando o carro parou na frente da casa.
Havia um portão grande, de ferro, por onde se via o quintal. Via-se também grandes árvores, antigas, e debaixo de uma delas um banco de madeira, alisado pelo uso, envelhecido pela longa exposição ao tempo, coberto de folhas, como a dizer que há muito não era usado.

Para ele, aquelas árvores eram novidade, mas a casa não. Mesmo assim, olhou o número como a confirmar que era ali mesmo.

Com uma das mãos no portão, o homem olhou a casa, depois voltou o olhar para a rua e, por um longo momento, considerou que talvez devesse tocar a campainha da porta principal. Deu alguns passos em sua direção, mas, mudou de ideia.

Seus movimentos eram lentos e ele concluiu que isso se devia à longa viagem na qual ele dirigira toda a noite. Desde que recebera o telegrama, pensou ele. Talvez, depois de um bom café, as coisas voltem ao ritmo normal, pensou novamente.

Percorreu alguns metros, passando embaixo das árvores até alcançar a porta dos fundos. Olhou lá dentro, ‘ainda’ era a cozinha, e depois o corpo da casa, envolvido pela penumbra da manhã. Ouviu vozes suaves vindas lá de dentro, antigas como as árvores, e sentiu uma ligeira contrariedade.

Apertou um pouco os olhos e viu lá dentro um homem de cabelos brancos, de óculos, que, num movimento quase simultâneo também o olhou. Enquanto vinha em sua direção, sem pressa, ele reconheceu o jeito de andar, os olhos também apertados, tentando identificar aquele homem parado na porta de sua cozinha. Parecia buscar em um canto esquecido, numa gaveta que há muito não se abria, uma fotografia. Segurava em suas mãos um papel que estava lendo, enquanto andava em direção a ele.
Eram gestos comedidos, duvidosos, quando o visitante disse:
- Pai?
Era um chamado, mas também uma interrogação.

O pai sentiu um breve estremecimento, uma angústia descabida, quase uma fraqueza a tomar conta de seu corpo, sem saber se estendia a mão ou se abria os braços e acolhia aquele homem parado à sua porta. Sentiu-se inseguro naquele gesto tantas vezes ensaiado. E dele se ouviu uma voz cansada, surpresa, que também soou como uma interrogação.
- Filho?

Então, eles se reconheceram e se abraçaram, indecisos.

Estavam quase tímidos assim tão próximos. Havia tanta coisa a perguntar, a comentar, mas, tudo parecia ter se perdido no tempo.
O pai olhava o filho e perguntava lá dentro do seu coração: ‘por quê tanto tempo? O caminho que te levou não te ensinou a voltar?’ - Tinha vontade de saber o que rompeu, se ele não sentiu saudade, mas, a voz estava embargada, parecia uma mágoa. O tempo...

O filho perguntou antes: “E a mãe, como está”?
O pai respondeu que ela estava lá dentro, deitada. Estava enfraquecida pela doença. Por isso ele havia enviado aquele telegrama. Não sabia se o endereço ainda era o mesmo. O neto havia procurado na internet. O neto, filho de sua irmã...

Irmã... Ele tinha uma irmã. E também sobrinhos... De novo aquela contrariedade fez sombra em seu olhar.

E o pai continuou a dizer-lhe, sem pressa, sem alterar a voz, que enviou o telegrama: sua mãe... “doença ruim’... se quiser... se puder... O pai quis olhá-lo, examiná-lo, confirmar o tempo na cor do cabelo, nos vincos do rosto, mas, teve receio, faltou intimidade. Quanto tempo? Quando saiu de casa contava 20 anos, agora - quase 50.
De novo sentiu um breve estremecimento. Queria saber o que houve, se tinha mulher e filhos, mas, o tempo...

Ao invés disso, o pai perguntou-lhe se queria ver a mãe. Ele respondeu que sim, levantou-se lentamente e entrou na casa. A mesma casa, algumas mudanças, mas, a mesma casa. Como ele mesmo.

Ao entrar no quarto, as janelas estavam abertas, e ele viu uma mulher abatida, ainda bonita, que o olhou assim que atravessou a porta e a luz da janela iluminou-o como se estivesse num pequeno palco.

- Filho?
Ele quis responder, quis dizer tanto, mas, uma grande contrariedade inundou-lhe os olhos, o coração.

Ela perguntou: ‘por quê’? Tão baixo como só o coração sabe dizer.
Ele não soube, nunca saberia responder. Quem sabe – culpa do tempo...

V I D A

Abre-se a grande roda
Girando, girando, girando
Te espera o mundo.
De repente, lá no meio
É você girando...
Girando e brincando e girando.

O círculo cresce.
E você girando, girando
Num frenesi alucinado.
Quer sair da roda?
Impossível!
O tempo passando e você...
O tempo girando e você.

O círculo se fechando
E você lá no meio, girando
Girando... mais devagar
Devagar, o círculo se fechando
Brincadeira acabando...
Girando devagar, até parar.
É você no meio
Inerte ... sozinho.

sábado, 1 de maio de 2010

Divisas


A placa indica: logo à frente é divisa de estados;
Outra, alerta que é preciso reduzir a velocidade;
Vou seguindo, atenta, como tantas vezes o fiz.
Tantas vezes como se nunca o tivesse feito.

Um pensamento infantil me cutuca:
Quem calculou as fronteiras?
Riscou o chão e empunhou a placa?
Agora é este, antes o outro.

Indiferente, o carro percorre o caminho,
Ultrapassa a fronteira e segue em frente.
O que há com meus olhos?
Pergunta-me o mesmo pensamento infantil.

Não sei bem de onde surgiu essa tristeza.
Acho que percorreu os mesmos caminhos,
Sequer viu a placa e seguiu-me até aqui
E sentou-se ao meu lado.

À sombra em Parati


Era um dia quente do mês de janeiro.

Minhas irmãs e eu fomos conhecer a cidade de Parati, no Rio de Janeiro, em pleno verão.
O calor caía pesado, mas havia no ar aquele cheiro bom de novidade. As ruas cheias – tanta coisa para ver, tanta gente para andar naquele calçamento difícil.
Sacolas, em número cada vez maior, iam guardando as novidades.

Em algum momento dessa procissão sem santo, eu parei e disse que elas poderiam continuar a caminhada, eu ficaria ali, naquela praça de árvores imensas, de frente para a igreja, esperando. Queria descansar, queria olhar apenas.

A praça, afastada do centro agitado do comércio, parecia um oásis. Alguém sentado em frente à igreja, esperando, e eu, sentado entre árvores frondosas, observando, registrando coisas simples, sem barulho, sem corre-corre, sem sacolas, sem o sol a castigar a pele desacostumada dele.

De repente, do outro lado da rua, uma criança, mais ou menos 8 anos, em cima de uma carroça igual a tantas que circulam pela cidade, parada também à sombra, e seu cavalo – ar de cansaço, enfado.
Ao lado dele, quase embaixo, outra criança, bem mais nova, talvez uns quatro anos, olhava fascinado o cavalo que mastigava (ou era o freio que o incomodava). Pareciam extraídos de uma fotografia – um triângulo: uma criança pobre numa carroça olhava intrigada outra criança, turista admirada, que olhava um cavalo que nada via, apenas mastigava.

E eu lá, do outro lado da praça, observava os três com enlevo.

De repente, apareceu uma menina, com seu vestido de flores, também não devia ter mais que quatro anos. Na ponta daquela calçada muito alta, coisa de cidades antigas, ela parou, inclinou o corpo para frente, segurando a barra do vestido, e gritou para o menino que olhava o cavalo:
- Artur!
Ele não a ouvia – não porque estivesse longe, mas porque estava fascinado.
- Artur, vem, mamãe tá esperando!
Nada.
Os “erres” muito bem pronunciados, o corpo inclinado para frente e seu vestido de flores e, eu lá, embevecido.
- Arrrturrr, vem. Sai daí, Artur, ele vai te morrrderrr – referindo-se ao cavalo.
Artur virou-se e disse, solenemente:
- Não vai não, esse “cachorro” não morde.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Injustiça

Há um temor mal contido
Como asas negras pressionadas contra o corpo.
É preciso correr, é preciso fugir.
Para onde?
Não se vê horizontes além da densa névoa
a esconder tantos medos.
O corpo agora tão pequeno, tão frágil,
Tão submisso se encolhe.
Cada vez menor, insignificante
Transforma-se, vira poeira.
Ninguém vê, o vento sopra.
De longe, muito longe,
Deus a tudo assiste, tudo enxerga,
Onipresente, Deus o recolhe.

domingo, 25 de abril de 2010

Cidade Morta


Vive em mim uma cidade morta
Seus habitantes, suas ruas, suas casas sem reboco
Estão todos dentro de mim.

O tempo que passou ainda passa em mim
Os sentimentos de antes, tão velhos, passando
Lentamente, como a vida dali.

O sol fustiga seus moradores, como a exigir
Que se rebelem, mas, nada! Quando a noite cai,
eles escondem a tristeza no fundo das casas.

Lá dentro, junto com suas lembranças, medos,
Fantasmas sentados nos tamboretes, nos cantos dos
Alpendres, que eles recolhem no fim da tarde.

Vive em mim essa cidade morta
Perdida numa poeira vermelha, desbotada,
Sem ouro, sem o brilho das pedras, de Minas Gerais.

Saudade

Saudade... o que é?

Algo dentro do peito
Que às vezes se espalha
E se derrama pelos olhos.
E depois,
Se recolhe, se resigna,
e se acomoda novamente
dentro do peito.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Adiante

- Tô indo, mãe.
Grito do portão da casa.
- Que Deus te acompanhe.
Responde ela lá de dentro.
...

Fecho o portão e sigo pela rua.
Lá adiante olho pra trás.
A casa ganha contorno de ninho.
Lá dentro, minha mãe.
...
Fecho os olhos e sigo a vida.
De vez em quando olho pra trás.
Já não enxergo o contorno do ninho.
Mas, lá dentro, ainda está minha mãe.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Infância

Cheiro bom de milho assando nas brasas da fornalha,
da terra molhada, da chuva lavando as folhas das árvores,
da dama-da-noite lançando cheiro doce no vento que passa.

Novembro passando, dezembro chegando,
manga escorrendo pelos cotovelos empoeirados.

Vida caminhando, devagar e sem cismas.