segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Volver

Ele estava mesmo de caso pensado diria a sua mãe.
Há dias vinha matutando, acordando muito cedo e depois, sem saber ao certo o que fazer, ficava negaceando as horas. Cada dia mais se pegava a falar pra si mesmo. Pensava muito, fazia pouco. A vida agora tinha cheiro de perfume derrancado.
Pensou, achou engraçado ter se lembrado dessa palavra: derrancado – repetiu-a em voz alta.
E como um ator ensaiando sua fala, falou para si mesmo: “Com quantos paus se faz uma canoa?” – complementou: Com quantos sentimentos se faz uma vida?
De uns tempos pra cá, parecia um gato olhando nas gretas. Às vezes olhava a rua e ela lhe parecia tão enfadonha. Se saísse, teria que cumprimentar as pessoas, sorrir, ser simpático... Melhor ficar dentro de casa, ponderou, não andava inclinado às simpatias.
Pensou em viajar, voltar ao início, fazer o caminho inverso (já ouvira ou lera isso). Talvez fosse bom.
Lembrou-se de um tempo de criança, da mãe gritando embaixo das grandes árvores (houve um tempo em que havia grandes árvores nos quintais): “Desce daí, desce já. Você vai ver, quando descer vou te dar uma tunda”! Dava nada! Quando ele descia e ela o via em segurança, punha-se a fazer aqueles discursos que mal ouvia: quase doce ela dizia: “Ô, meu filho, onde já se viu subir tão alto daquele jeito, na grimpa da árvore!” – depois, mais asperamente completava: “depois, cai de lá, quebra um braço, uma perna, aí eu quero ver”! Pensou, quase falando sozinho outra vez - criança não tem medo.
Às vezes, passava por alguns apertos e entrava meio ressabiado em casa. Lá vinha a mãe:
“O que você andou aprontando? Boa coisa não é! Por que essa cara branca que nem pano de polvilho?!”
Ele riu pensando em quantas expressões os pais usavam que traduziam tão perfeitamente o que se passava.
Quase sempre ia dormir sob protestos, afinal, tinha tanta coisa para fazer e o dia passava tão rápido. Além de tudo, perdia meio dia na escola!
O pai fazia a sua parte no discurso:
“No meu tempo, na sua idade, eu já ajudava o meu pai. Agora, é mesmo de amargar... esse povo de hoje não quer saber de coisa séria...”
À noite, o pai contava os casos de sua infância, do Pedro Malasartes e das figuras engraçadas de seu tempo. Eram tantos casos bons de ouvir. Às vezes ouvia o mesmo por muitas e muitas vezes e não se cansava. De vez em quando pedia: “Ô, pai, conta aquele do...” e ele ria, um riso bom e punha-se a contar. Tinha um que o pai gostava de contar e ele de ouvir: aquele do vizinho que morria de vontade de ter um carro. Mas, carro era artigo de luxo, para pouquíssimos privilegiados. Mesmo assim, ele juntou dinheiro por alguns anos e comprou um carro usado, grande, mesmo não sabendo dirigir. Ele imaginava que ‘aquilo’ não era coisa difícil, afinal, o fulano sabia! Então, ele pediu instruções para o fulano, assim, sem ligar o motor (naquelas bandas, carteira de motorista era uma ‘bobagem’). O outro explicou para que serviam todos aqueles pedais: “aqui é o freio, ali a embreagem, esse o acelerador; toda vez que mudar a marcha é preciso apertar esse...” Coisa simples, muito simples! O carro lá na garagem, sempre limpo, bem cuidado. De vez em quando o dono o punha para funcionar senão teria problemas com a bateria, o outro avisara. Mas, um dia, num domingo de manhã, muniu-se de coragem e saiu com o carro. Ligou-o e saiu, bem devagar pra não levantar a poeira da rua. Engatou a primeira marcha - isso ele sabia - sempre observava os motoristas enquanto ia no banco do passageiro sonhando com o dia em que faria isso. O coração mais acelerado que o do Corcel...

Mais tarde ele se sentou no banco, na casa de seu pai e contou o que houve depois daquela curva suave: “Acho, compadre, que não é assim tão fácil. Pus o bicho pra funcionar, fui levando devagar e, de repente, me enganei com os tais pedais... malhei a fuça do danado na árvore!”.
Com tantos trejeitos, adjetivos, o pai a fazia ‘uma senhora história’. E ele perguntava ao pai, e depois e depois, mesmo já sabendo o final: “o homem mandou consertar o carro e o guardou na garagem de novo. De vez em quando, ele o ligava pra não arrear a bateria. Limpava que ficava uma beleza. Ele tinha o seu sonho ali, guardado, visível...”

Voltou a rir da história. Agora, sozinho.

Olhou as horas, pensou no tempo, sentiu uma tristeza tão dolorida! Lembrou-se de tantos sonhos e sentiu vontade de ter um ali, guardado, visível!

Arrumou a mala e saiu apressado – ainda poderia encontrá-lo.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Infância Azul

A casa é azul.
Azuis são as flores dos manacás que perfumam as tardes.
Azul é o céu que cobre a cidade no mês de junho.
Azul é a montanha que cerca a pequena cidade.
Nada além parece existir.

Há conforto no tom que se espalha e parece voar nas asas da borboleta,
e se resguarda no quintal da casa.

Perfilam-se no quintal inúmeros pés de laranja,
e suas pequenas flores, tão brancas e perfumadas, parecem milhões de minúsculas fadas a espalhar água de cheiro sobre a cidade.

O azul se derrama e me confunde.

Mas, ali, a vida não é azul.

Meu pai, em pé na porta, olha em volta.
Tudo o que ele tem está ali:
uma casa azul e seus manacás e seus pés de laranja.
Esse tudo lhe parece tão pouco...

Eu, criança, olho o meu pai.

Tudo o que sei é que há conforto na casa azul, há o cheiro bom dos manacás e das laranjeiras. E ainda há borboletas!

Olho o meu pai na porta, admirada – ele é o dono do mundo azul.